O Conceito de Angústia
Mariah de Olivieri
A angústia arrasa. Demole certezas, aniquila. Contudo, em algumas situações, pode ser deveras educativa.
Sören Kierkegaard desenvolveu um inusitado olhar para essa aflição, escrevendo a obra que se constituiu no verdadeiro tratado sobre esse tema: Trata-se do livro O conceito de Angústia (KIERKEGAARD, 1968).
Estamos cientes de tratar-se de uma obra complexa, com várias histórias e metáforas. Kierkegaard, neste livro, expõe sua teoria a respeito de Angst[1] (alude Vigilius Haufniensis, autor heterônimo da obra). Este personagem foi um profundo perito da dogmática e conheceu na angústia, o insondável abismo da existência humana.
Vigilius tece um esclarecimento psicológico a respeito da questão da angústia, que, em sua visão constitui-se o componente primeiro no indivíduo, estando presente em todas as horas, em todas as ocasiões, sendo o próprio sinal da fragilidade humana.
A angústia consiste em um estado d’alma que carcome todas as coisas do mundo finito, acendendo a chama da possibilidade, deixando expostas todas as ilusões do cotidiano:
A angústia é a possibilidade da liberdade, só esta angústia é, com a fé, absolutamente formadora, na medida que ela rói todas as coisas finitas, descobre todas as suas ilusões (KIERKEGAARD, 1968, p.157) [2].
É discutida neste livro a fé, que é paradoxo e angústia diante de Deus, que surge como possibilidade infinita, sendo o próprio mot-clé da existência.
A angústia descortina para o indivíduo a possibilidade de liberdade e age como formadora através da fé, onde o pecado não é jamais puro espírito, eterno e infinito, mas sim, espírito sempre já unido à carne. Antes do pecado, na ignorância da inocência, Adão era de alguma forma pré-humano.
O sentimento de angústia já se manifestava entre os gregos, em sua crença no sofrimento diante do destino, sobretudo do destino trágico.
O sentimento de angústia dado por Deus, para Vigilius, foi uma pré-condição para a queda, e está inserido na vida de todo indivíduo. Por outro lado, entre os judeus da antiguidade, a angústia se apresentava através do conceito de culpa frente à lei moral. Entretanto, para Kierkegaard, a angústia torna-se um alento positivo para o indivíduo, guiando-o pela fé e de volta à Deus.
É a angústia que forma o discípulo na possibilidade e prepara o indivíduo para ser o cavaleiro da fé, pois é através da fé que a angústia ensina o indivíduo a descansar na Providência.
Portanto, o indivíduo deve ter a coragem de, através da fé, pôr-se em relação com Deus. Quando o indivíduo se põe diante de Deus, caem por terra todos os disfarces e ilusões; este acontecimento marca-o de forma irreversível. Contudo, é preciso que o indivíduo se dispa de idéias e pensamentos pré-concebidos e volte-se ao essencial que reside no âmago de seu ser, para que o encontro com Deus seja viável.
Neste momento, quando o indivíduo consegue se desvencilhar de todo o emaranhado de conceitos ilusórios que o prendem à pseudo-realidade, ele se encontra só perante Deus, ele está nu diante de Deus; neste momento, há apenas o indivíduo e sua fé.
Kierkegaard aborda destarte a definição de liberdade, isto é, como a liberdade, que é o dom mor do indivíduo, se origina:
Voltando-se para dentro de si próprio, o gênio religioso acha a liberdade. O destino nenhum medo lhe infunde, visto que não entende qualquer serviço no exterior e a liberdade, para ele, é identificada com sua beatitude, [...], porém, a liberdade de saber, no seu íntimo, que em si mesmo é a liberdade (KIERKEGAARD, 1968, p.112-113)[3].
A existência é o reino da liberdade e se apresenta como uma infinita possibilidade. Esta situação da complexidade da existência está repleta de possibilidades, o que implica em responsabilidades, que levam o indivíduo a uma espécie de vertigem espiritual. A angústia existencial é o resultado de uma experiência interior, é quando o indivíduo se depara com as ilimitadas possibilidades de sua própria liberdade.
Esta liberdade, através da possibilidade, é uma grande aflição e, ao mesmo tempo, uma dádiva, constituindo-se em uma qualidade do indivíduo espiritualmente evoluído. De acordo com Kierkegaard, a possibilidade é a mais pesada das categorias, pois na possibilidade tudo é igualmente viável.
A angústia é a realidade como possibilidade antes mesmo dela existir; é a experiência que todo o indivíduo tem que passar um dia, que mais cedo ou mais tarde bate em sua porta, fustigando sua alma e rompendo com todas as certezas.
Kierkegaard afiança que quando o indivíduo conclui a escola da possibilidade, ele sabe, melhor que nenhum outro, que não está apto a exigir nada da vida, e que o caos reside dentro de si.
Portanto, o indivíduo que não deseja afundar-se na miséria da finitude é forçado a, no sentido mais profundo, atirar-se nos braços da infinitude. Deste modo é que, para Vigilius, a angústia auxilia o indivíduo a se tornar quem ele deve realmente e verdadeiramente ser. Pois é somente através da possibilidade e da angústia decorrente desta que o indivíduo atinge o ápice da fé.
Quando administradas corretamente, as descobertas da possibilidade descortinam todas as finitudes, e deixam a descoberto todas as ilusões mundanas, fúteis e mesquinhas.
Destarte, a liberdade não encontra na finitude onde se apoiar e se sustentar. De tal modo, só o indivíduo que é formado pela possibilidade, estará formado segundo sua infinitude. Aqui a possibilidade é considerada como que uma ameaça, por fornecer ao indivíduo inúmeras opções.
Somente o indivíduo que atravessou a angústia da possibilidade, só este está plenamente apto a não sentir angústia; não porque a evite, mas sim porque esta sempre perde sua potência ante a possibilidade. Por isso, quem aprendeu a angustiar-se impecavelmente, aprendeu o supremo saber.
Kierkegaard sustenta que o indivíduo necessita recuperar seus valores mais profundos e verdadeiros, possibilitando através deste processo o resgate de sua individualidade, para que ele se torne um indivíduo singular. Através desse processo, o indivíduo adquire a consciência de que, sendo verdadeiro em sua essência e em seu querer, isto o possibilita encontrar paz para seu atormentado espírito; desta maneira, o indivíduo se torna um sujeito pleno, um verdadeiro si mesmo e assim, está apto à abandonar a angústia.
Kierkegaard acredita que o indivíduo que se gaba por nunca ter se angustiado deve ser muito sem espírito, pois o indivíduo dotado de espírito, certamente em algum momento de sua existência, foi ou será invadido pela angústia; assim sendo, o indivíduo só adquire sua individualidade através da experiência formadora da angústia.
É através desse rito de passagem, proporcionado por esta experiência que o indivíduo é conduzido aos braços da fé. Isto significa que o indivíduo, formado pela angústia através da fé, erradica justamente o que a angústia produz, ou seja, as incertezas da existência; é a angústia, inclusive, que auxilia o indivíduo a elaborar quem ele é realmente, onde se encontra existencialmente e para onde ele deve ir através de suas escolhas; e, assim, o guia ao encontro de Deus, a entregar-se a Deus. Segundo Kierkegaard, a única forma de escapar da angústia é, pois, dar o salto da fé:
Se forem administradas ordenadamente as descobertas da possibilidade aí, a possibilidade há de descobrir todas as finitudes, mas há de idealizá-las na figura da infinitude, dominará o indivíduo na angústia, ate que ele, por sua vez, as vença na antecipação da fé. (VALLS, 2008)[4].
Para Kierkegaard, a experiência da angústia descortina o destino humano em toda a sua magnificência. Através do auxílio da fé, a angústia educa a individualidade a repousar na Providência.
Assim é que a real aprendizagem da angústia representa o supremo saber, pois ela constitui o possível da liberdade no sentido pleno da palavra; pois somente através do estabelecimento da relação absoluta com Deus é que o indivíduo alcança com profundidade o entendimento de sua existência.