O problema é que a mão do outro nem sempre está disponível para esse trabalho: a
alma sangra, dói, e os rasgos se expandem…
Mas será que isso existe?
Os poetas, há muito, já apregoaram que o amor é sempre “para sempre”.
Escritora
O problema é que a mão do outro nem sempre está disponível para esse trabalho: a
alma sangra, dói, e os rasgos se expandem…
Mas será que isso existe?
Os poetas, há muito, já apregoaram que o amor é sempre “para sempre”.
"Estava conversando com
uma amiga, dia desses. Ela comentava sobre uma terceira pessoa, que eu não
conhecia. Descreveu-a como sendo boa gente, esforçada,
ótimo caráter. “Só tem um probleminha: não é habitada”. Rimos. É uma expressão
coloquial na França — habité — mas nunca tinha escutado por estas paragens e
com este sentido. Lembrei-me de outra amiga que, de forma parecida, também
costuma dizer “aquela ali tem gente em casa” quando se refere a pessoas que
fazem diferença.
Uma pessoa pode ser altamente confiável, gentil,
carinhosa, simpática, mas se não é habitada, rapidinho coloca os outros pra
dormir.
Uma pessoa habitada é uma pessoa possuída, não necessariamente pelo demo, ainda que satanás esteja longe de ser má referência.
Clarice
Lispector certa vez escreveu uma carta a Fernando Sabino dizendo que faltava
demônio em Berna, onde morava na ocasião.
A Suíça, de fato, é um país de contos
de fada onde tudo funciona, onde todos são belos, onde a vida parece uma
pintura, um rótulo de chocolate. Mas falta uma ebulição que a salve do marasmo.
Retornando ao assunto: pessoas habitadas são
aquelas possuídas, de fato, por si mesmas, em diversas versões. Os habitados
estão preenchidos de indagações, angústias, incertezas, mas não são menos
felizes por causa disso. Não transformam suas “inadequações” em doença, mas em
força e curiosidade. Não recuam diante de encruzilhadas, não se amedrontam com
transgressões, não adotam as opiniões dos outros para facilitar o diálogo. São
pessoas que surpreendem com um gesto ou uma fala fora do script, sem nenhuma
disposição para serem bonecos de ventríloquos. Ao contrário, encantam pela
verdade pessoal que defendem. Além disso, mantêm com a solidão uma relação mais
do que cordial.
Então são as criaturas mais incríveis do universo?
Não
necessariamente.
Entre os habitados há de tudo, gente fenomenal e também
assassinos, pervertidos e demais malucos que não merecem abrandamento de pena
pelo fato de serem, em certos aspectos, bastante interessantes.
Interessam, mas assustam.
Interessam, mas causam dano.
Eu não
gostaria de repartir a mesa de um restaurante com Hannibal Lecter, “The
Cannibal”, ainda que eu não tenha dúvida de que o personagem imortalizado por
Anthony Hopkins renderia um papo mais estimulante do que uma conversa com, sei
lá, Britney Spears, que só tem gente em casa porque está grávida.
Zzzzzzzzzzz.
Que tenhamos a sorte de esbarrar com seres
habitados e ao mesmo tempo inofensivos, cujo único mal que possam fazer é nos
fascinar e nos manter acordados uma madrugada inteira.
Ou a vida inteira, o que
é melhor ainda.”
Martha Medeiros