Levar a vida a sério não quer dizer passar a vida inteira meditando, como se vivêssemos nas montanhas do Himalaia ou nos velhos dias do Tibete.
No mundo moderno temos que trabalhar e ganhar nosso pão, mas não nos devemos enredar em uma existência das-oito-às-seis onde vivemos sem noção do significado mais profundo da vida.
Nossa tarefa é chegar a um equilíbrio, encontrar um caminho do meio, aprender a não nos estendermos além do possível em atividades e preocupações irrelevantes, e simplificar mais, e mais nossas vidas.
A chave para encontrar um equilíbrio feliz na vida moderna é a simplicidade.
Assim, a disciplina é fazer o que é apropriado ou justo, isto é, em uma época excessivamente complexa, simplificar nossas vidas.
A paz de espírito surgirá daí.
Haverá mais tempo para tratar das coisas do espírito e do conhecimento que só a verdade espiritual pode trazer, e que podem ajudar a enfrentar a morte.
Infelizmente só uns poucos de nós fazem isso. Talvez agora devamos perguntar a nós mesmos:
“O que de fato consegui realizar na vida?” Com isso quero perguntar:
o que de fato compreendemos sobre vida e morte?
Se observarmos nossa vida, veremos claramente quantas tarefas sem importância, as assim chamadas “responsabilidades”, se acumulam para preenchê-la. Um mestre chega a compará-las a “fazer faxina num sonho”. Dizemos a nós mesmos que queremos empregar o tempo nas coisas importantes da vida, mas nunca temos esse tempo. Mesmo no simples levantar-se pela manhã, há tanto o que fazer: abrir a janela, fazer a cama, tomar banho, escovar os dentes, alimentar o cachorro ou o gato, lavar a louça da véspera, descobrir que o açúcar ou o café acabou, sair para comprá-lo, fazer o café da manhã – a lista é interminável. Aí há roupa para arrumar, escolher, passar e dobrar de novo. E o que dizer do cabelo ou da maquiagem?
Incorrigíveis, vemos nossos dias se encherem de telefonemas e projetos insignificantes, com tantas responsabilidades – ou devemos chamá-las “irresponsabilidades”?
Nossa vida parece viver-nos, possuir seu próprio ímpeto bizarro de arrastar-nos; no fim sentimos que não temos mais escolha ou controle sobre ela. As vezes acordamos a noite banhados de suor, perguntando a nós mesmos: “ O que estou fazendo com minha vida?” Mas nossos temores só duram até o café da manhã. Logo, pomos a pasta sob o braço e começamos tudo de novo.
Penso no santo indiano Ramakrishna, que disse a um dos seus discípulos:
“Se usasse para fazer prática espiritual um décimo do tempo que dedica a distrações como conquistar mulheres ou ganhar dinheiro, você se iluminaria em poucos anos!”
Continuar pensando obsessivamente nessas coisas pode tornar-se um fim em si mesmo e uma distração sem sentido.
A sociedade moderna me parece uma celebração de todas as coisas que nos afastam da verdade. Esse samsara moderno alimenta-se de ansiedade e depressão que ele próprio fomenta, e para as quais nos treina e cuidadosamente nutre com um mecanismo de consumo que precisa manter-nos ávidos para continuar funcionando. O samsara é altamente organizado, versátil e sofisticado. Investe sobre nós de todos os lados com sua propaganda, criando à nossa volta uma cultura de dependência quase inexpugnável. Quanto mais tentamos escapar, mais nos sentimos enredar nas armadilhas que ele tão engenhosamente nos prepara. Como dizia no século XVIII o mestre tibetano Jikmé Lingpa: “Hipnotizados pela mera variedade de percepções, os seres vagam infinitamente perdidos no círculo vicioso do samsara”.
Obcecados, então, por falsas esperanças, sonhos e ambições que nos prometem a felicidade mas conduzem somente à miséria, somos como forasteiros rastejando num deserto sem fim, morrendo de sede. E tudo que esse samsara nos oferece para beber é um copo d’agua salgada, com o propósito de deixar-nos ainda mais sedentos.
Autor: SOGYAL RINPOCHE
Fonte: Textos tirados do livro: O livro tibetano do viver e do morrer, - Editora Talento e Palas Athena